Quando me referi ao diálogo com alguém que escreveu melhor, não foi brincadeira; falo do escritor austríaco Stefan Zweig (1881-1942), cuja autobiografia – subtitulada O Mundo de Ontem – ando a ler por esses dias. Zweig escreveu-a num hotel de Petrópolis sem ter por perto seus livros, cartas ou quaisquer outros papéis de consulta. Contou somente com a própria memória.
No período que antecedeu a Primeira Guerra, Zweig viveu algum tempo em Paris. Ele, que já adolescente descobriu sua vocação de artista (com a palavra), teve contato com grandes mestres na capital francesa – aquela Paris que nós só poderemos conhecer graças a escritores como ele.
Um dos mestres com quem travou contato foi o escultor Auguste Rodin, artista já consagrado à época do encontro com o jovem austríaco. Para surpresa de Zweig, Rodin convidou-o para almoçar em casa e conhecer seu ateliê. Em dado momento, o velho mestre mostrou ao rapaz uma escultura em que estava a trabalhar.
Stefan Zweig, é claro, ficou impressionado; mas Rodin, calmo, notou que ainda faltava algo naquela escultura. Por um momento, esqueceu-se de seu visitante, colocou o avental e começou a trabalhar. Aqui o entusiasmo apareceu.
Rodin estava tão absorto, tão mergulhado no seu trabalho, que nem um trovão o teria despertado. Seus movimentos iam se tornando cada vez mais violentos, quase furiosos; foi tomado por uma espécie de exaltação ou de ebriedade, trabalhando cada vez mais rápido. Então, suas mãos foram se tornando mais lentas. Pareciam ter reconhecido que não havia mais o que fazer. Recuou uma, duas, três vezes, sem modificar mais nada. Depois, murmurou alguma coisa, recolocou os panos em torno da estátua tão carinhosamente quanto se coloca um xale nos ombros da mulher amada. Respirou profundamente, aliviado. Seu corpo pareceu tornar-se pesado de novo. O fogo se apagara.
Isto não é um artigo acadêmico para que eu ande a fazer citações, já sei; mas não poderia deixar de copiar – antes que nada, para mim! – a descrição de Zweig. Diante da obra, Rodin não viu mais nada: foi tomado de um entusiasmo, de uma vontade total de criar aquela beleza, de trazê-la ao mundo numa forma que tinha de ser perfeita. E, naquele momento, sua pessoa inteira – sem qualquer intenção – se mostrou ao jovem Stefan Zweig.
Imaginei o entusiasmo do escritor austríaco exilado que, sem precisar de qualquer consulta, pôde evocar a imagem que lhe ficara impressa na memória; e, em homenagem ao mestre Rodin, criou beleza com as palavras. Também ele, absorto, pensava em Rodin e cuidava para que cada palavra fosse fiel à cena inesquecível.
É isto o que faz o entusiasmo: deixa escapar o que há de mais íntimo em nós, o que mais amamos. Ele pode ser traiçoeiro – não nos enganemos – ou sublime, feito em Rodin e Stefan Zweig.
No fim das contas, penso que não tenha falado do entusiasmo. Tentei apenas mostrá-lo. Espero ter sido salvo por Stefan Zweig.
Gilmar Siqueira